No fim de semana que ontem terminou, dezena e meia de antigos alunos do IEP-UCP (Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa) reuniu-se em retiro no Convento da Arrábida, para reler em conjunto a História da Guerra do Peloponeso de Tucídides (século V a.C). Miguel Monjardino liderou os debates (bem como as caminhadas pela Serra) e Henrique Burnay (presidente do IEP Alumni Club) foi o anfitrião. Entre as passagens de Tucídides que foram debatidas encontrava-se a célebre “Oração Fúnebre” de Péricles.

Vinte e seis anos antes, em Outubro de 1993, essa mesma “Oração Fúnebre” de Péricles esteve em discussão, também no Convento da Arrábida, entre um grupo de jovens entusiastas da Teoria Política — uma área de estudo então oficialmente inexistente entre nós. Desses encontros, que passaram a realizar-se anualmente, nasceu o projecto do IEP-UCP, que viria a ser lançado em 1996, por iniciativa de Mário Pinto. Os Encontros da Arrábida foram também o embrião do actual Estoril Political Forum (cuja 27ª edição teve lugar em Junho deste ano, dedicado aos 75 anos do Dia D, aos 70 anos da NATO, aos 30 anos de Tiananmen e da queda do Muro de Berlim).

Como interpretar o regresso à “Oração Fúnebre” de Péricles, 26 anos depois? Karl Popper (cuja Sociedade Aberta e os Seus Inimigos [de 1945] esteve no centro dos debates no Encontro de 1993) teria certamente apreciado este regresso. Segundo ele, as palavras de Péricles exprimem a emergência da sociedade aberta em Atenas, contra o que designou de sociedade fechada, tribal e colectivista de Esparta. Nesse conflito entre Atenas marítima e liberal e a continental colectivista Esparta, Popper via um antepassado do conflito entre as democracias liberais do Ocidente e os colectivismos autoritários do nacional-socialismo nazi e do comunismo soviético (bem como do ulterior comunismo chinês).

“A nossa civilização ocidental tem origem nos Gregos. Foram, ao que parece, os primeiros a dar o passo do tribalismo para o humanitarismo”, escreveu Popper. Em seguida, cita uma longa passagem da “Oração Fúnebre” de Péricles. Talvez seja oportuno recordá-la aqui:

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“O nosso sistema político não concorre com instituições vigentes noutros lugares. Não copiamos os nossos vizinhos, tentamos sim ser um exemplo. O nosso governo favorece os muitos em vez dos poucos; é por isso que se chama democracia. As leis proporcionam de igual modo justiça igual para todos nas suas querelas privadas, mas não ignoramos os direitos da excelência. Quando um cidadão se distingue, será chamado a servir o estado, de preferência a outros, não por uma questão de privilégio, mas como recompensa pelo seu mérito, e a pobreza não é um óbice. […] A liberdade de que desfrutamos estende-se à vida quotidiana; não desconfiamos uns dos outros e não recriminamos o nosso semelhante se ele decidir seguir o seu próprio caminho. […] Mas esta liberdade não faz de nós gente sem lei. Aprendemos a respeitar os magistrados e a lei e a nunca esquecer que devemos proteger os que sofrem. E aprendemos também a observar as leis não escritas, cuja sanção reside apenas no sentimento universal do que é justo.

As portas da nossa cidade estão abertas ao mundo de par em par; nunca expulsamos um estrangeiro. […] Somos livres de viver exactamente como nos apraz, e no entanto estamos sempre prontos a enfrentar qualquer perigo. […] Admiramos a beleza sem nos entregarmos a caprichos e, embora tentemos melhorar o nosso intelecto, isso não enfraquece a nossa vontade. […] Não temos vergonha de admitir a nossa pobreza, mas consideramos vergonhoso não fazer qualquer esforço para a evitar. Um cidadão ateniense não neglicencia os assuntos públicos enquanto trata dos seus negócios particulares. […] Não consideramos inofensivo mas inútil um homem que não se interessa pelo estado. E, embora só alguns possam originar políticas, todos podemos julgá-las. Não olhamos para a discussão como um obstáculo à acção política, mas como preliminar indispensável a uma actuação sábia […]. Acreditamos que a felicidade é fruto da liberdade e a liberdade da coragem, e não recuamos perante os perigos da guerra […]. Em suma, sustento que Atenas é a escola da Hélade e que cada ateniense cresce desenvolvendo uma feliz versatilidade, uma preparação para quaisquer emergências e para a autossuficiência.” (Citado por Karl Popper, em A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, Edições 70, 2012, Vol. I, pp. 231-232).

Após esta longa citação, Popper escreveu:

“Estas palavras não são apenas um elogio de Atenas. Exprimem o verdadeiro espírito da Grande Geração [a geração que viveu em Atenas imediatamente antes da Guerra do Peloponeso e durante ela, onde Popper incluía Sófocles e Tucídides, Eurípides e Aristófanes, Heródoto, Protágoras, Demócrito, Alcidamas, Licofronte, Antístenes e, sobretudo, Péricles e Sócrates]. Formulam o programa de um grande individualista e igualitarista, de um democrata que percebe perfeitamente que a democracia não se pode esgotar no princípio sem significado de que ‘o povo deve governar’, mas sim basear-se na fé, na razão e no humanitarismo. São ao mesmo tempo uma expressão de verdadeiro patriotismo, de justo orgulho numa cidade que fizera sua a tarefa de dar o exemplo; que se tornou a escola não só da Hélade mas, como sabemos, da humanidade, nos milénios passados e vindouros.”(pp. 232-233).